O século da solidão – uma reflexão sobre o livro de Noreena Hertz

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(Silêncio)

O Século da Solidão, lançado há menos de duas semanas em Portugal, de Noreena Hertz, foi lido em poucos dias, pelo interesse que me causou. Escrito já durante a pandemia, aborda o tema da solidão já desde antes do seu início.

Robots cuidadores de idosos.

Executivos que pagam 40€ por hora para poderem levar canja a “amigos alugados” porque se sentem sós.

Pessoas que furtam lojas para poderem ser presos porque na prisão têm companhia.

Universidades que têm nas suas disciplinas, matérias relacionadas com a empatia e leitura de linguagem não verbal para os jovens compreenderem melhor as expressões de outros.

Soldados que fazem homenagem a robots que explodiram após a desativação de minas, tratando-os como humanos mortos em combate.

Habitantes de prédios que durante 3 anos não conheceram um único vizinho pelo nome…

Robots que fazem hambúrguers, ou que são porteiros de hotel.

São casos extremos e internacionais lá longe ou são fruto de imaginação delirante da ficção científica, correto?

Sabia que eram já uma realidade? Eu não.

(Silêncio)

O que aborda o “século da solidão”?

  • Economia gig ou dos biscates, como é o caso das entregas de comida, que está a retirar direitos de trabalho de uma parte significativa da força de trabalho, com jornadas longas e exaustivas, e completa incerteza do futuro, num segmento de população que vive muitas vezes só ou dependente destas tarefas para pagar contas de sobrevivência;
  • O afastamento da utilização de equipamentos públicos (parques públicos e de jogos, bibliotecas, ) com um desinvestimento de muitos governos devido à crise de 2008, e aumento das compras online e em grandes superfícies que está a desertificar os bairros locais e a diminuir as interações humanas;
  • A polarização de opiniões ditada por pessoas que se sentem sós e marginalizadas, “invisíveis” à sociedade, imersas nas redes sociais, a consumir conteúdos de ódio e distanciamento pelo próximo, com um sentimento de pertença a grupos extremistas que “falam a sua linguagem”, e com o consequente crescimento de grupos de “extremos”;
  • A automatização de profissões que está a aumentar o desemprego de mão de obra não qualificada sem um acompanhamento de formação/ajuda financeira/requalificação, em idades muito jovens, e onde se sentem excluídos e sem perspetivas, aumentando o sentimento de solidão e de pobreza;
  • A imposição de ritmos de trabalho e de ligação digital insuportáveis, 24h/24h, com pressão de resultados, colegas e despedimentos, e de constante conetividade, materializados por pulseiras de medição, emails e tarefas sem horas definidas, desprezo pelo equilíbrio entre vida profissional e pessoal, por parte de empresas de médias e grande dimensão, apesar dos lucros cada vez maiores, e que se traduz no afastamento com amigos e familiares, exaustão, depressão e doenças;
  • O “contacteless” e a relação com a IA (inteligência artificial) materializado no aumento de compras à distância, relações superficiais, assistentes digitais, onde as crianças falam mais com a Alexa ou Siri do que com adultos, imitando as ordens que damos por voz, imperativas, sem empatia, com um vocabulário cada vez mais restrito;
  • Os “ambientes humanos” mas de exclusão como festivais com bilhetes de centenas de euros, comunidades com condomínio fechado, escolas privadas com cultura de competitividade, e escolha de alunos e famílias, que se comparam com rankings de escolas públicas, mais inclusivas mas onde os recursos são deficitários, os ginásios e cafés de preços altos para segmentação de público, contribuindo para separação de classes;

E que outros aspetos o livro aborda?

Alguns estudos apontam para que a geração dos mais novos vá ser das primeiras em que será mais pobre e com menos condições que a anterior. Que os robots e IA vão substituir muitas profissões como médicos, psicólogos (sim, isso), gestores de fortunas e não apenas profissões mais industrializadas. Como ficaremos nesta economia da solidão?

Cidades que atualmente já têm espigões para não sentar/estacionar, bancos de pedra desconfortáveis para evitar os sem-abrigo, arrancando árvores em sítios de calor para colocar granito, em soluções de “penso-rápido” para turista ver.

Há cada vez mais pessoas a viver sozinhas, seja nas cidades ou nas aldeias, imersas nos seus interesses sugeridos pelo seu fornecedor de internet, televisão, de compras online ou simplesmente sem recursos financeiros para sair.

Fala-se e com muita razão do enorme desafio do ambiente que temos pela frente. Mas pior será fazê-lo cada um por si, em vez de fazê-lo em comunidade.

As aldeias estão a morrer com casas fechadas e estradas novas. As lojas de rua estão a fechar ou com colaboradores à porta, em bairros onde só à noite é que os habitantes lá estão. As empresas estão a internalizar (antes do Covid) serviços que seriam prestados por outros (ginásios, cafetaria) tornando-se bunkers. Os Open Spaces onde já ninguém se consegue ouvir, estavam cheios de pessoas de auscultadores, imersos nas respostas infinitas a solicitações de todo o lado. Trabalhadores industriais são monitorizados nas suas idas à casa de banho, pelos passos que dão, crianças aprendem a ler assim que começam a falar para se tornarem mais “competitivas” e não “perderem o comboio”.

O jornalismo está refém, nas suas páginas online, de anúncios de muitas marcas que querem prender a nossa atenção. Artigos não são escritos para não ferir algumas dessas marcas. Num artigo de um conhecido jornal sobre este livro, aqui, menciona-se que as redes sociais são as empresas de tabaco do século XXI. É verdade que o livro fala nisso, mas é redutor (e é sempre fácil fazer este paralelismo).

Possíveis soluções e ideias:

Mais voluntariado, associações comunitárias, direto a desligar, mais equiíbrio profissional-pessoal-familiar, programas de formação e qualificação adequados ao perfil profissional de desempregados, aproximação das comunidades locais, fomento ao comércio local, aos produtores e artistas, maior utilização de equipamentos públicos de partilha de conhecimento, maior envolvimento nas estruturas locais de decisão, educação focada na cooperação, no prazer de aprender, na gamificação e criatividade, no exercício e convivio, e não na industrialização de tarefas, na diferenciação e não no afunilamento de conhecimento.

Mais partilha, menos eu e mais nós, a própria música mudou o “We, Us” para o “i, me, mine, my”

São assuntos incómodos porque não têm solução fácil, nem imediata, algo que apreciamos. Algo que se possa tomar com água e que passe em minutos.

Eu gosto da tecnologia, já me deu muito, e não quero diabolizá-la, até porque somos nós que a usamos e a melhoramos.  Para quê ter deslocações de horas ou dias quando podemos falar à distância, por exemplo? Mas estamos a correr riscos de nos tornarmos estranhos uns para os outros, mais propensos a querer ficar na nossa a ver o feed das Redes Sociais, do que a conviver, cara a cara, com o telefone longe, em vez de estar a preparar aquele momento para ser partilhado.

O ser humano não é o animal mais rápido e mais forte, mas sobreviveu porque conseguiu colaborar em comunidade em larga escala. Em relação às vacinas do COVID-19 foi possível fazê-lo. Mas há outros desafios que estamos a enfrentar, em solidão e isolamento, virados para nós próprios.

Fica aqui esta reflexão, e uma leitura que recomendo a todos, concorde-se ou não com esta reflexão.

Tudo de bom.

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